DSÍ-EMBODYMENT Uma vídeo-instalação de AnaVitória Direção: AnaVitória e Leticia Monte Performer: Carolyna Aguiar A Vídeo-instalação DSÍ-embodyment nos propõe experienciar através do seu dispositivo cinemático,…
Participação em exposições
Lygia 100 anos
Pinakotheke Cultural Rio de Janeiro (out a dez 2021)
Lygia 100 anos
Pinakotheke Cultural São Paulo (dez 2021 a jan 2022)
13ª Bienal do Mercosul
Porto Alegre (set a nov 2022)
ENCRUZILHADA UMA INSTAURAÇÃO PERFORMATIVA RITUAL DE ANAVITÓRIA Residências artísticas e pesquisa de campo de OUTUBRO de 2021 a ABRIL de 2022. Estréia absoluta em…
Sistema investigativo de pesquisa e criação autobiográfica
Este trabalho é desenvolvido em Instituições Universitárias em cursos de graduação e pós-graduação lato e stricto sensu, Grupos de Estudos e Pesquisa, Coletivos de Criação, Workshops em Festivais de Dança, Teatro, Artes Visuais e Plásticas, Seminários de Arte-Educação, Encontros de Arte-Clínica e Terapias Corporais, Encontros de Práticas Somáticas, Cursos de formação em diversos campos da Corporeidade, Atendimentos privados e coletivos de práticas corporais, Preparação Corporal para atores e Direção de Movimento para Peças Teatrais, Criações Coreográficas para Cias de Dança, Grupos e performers.
DSÍ O corpo não preexiste à dança. Escapa dele mesmo por todos os poros da pele que não é mais uma fronteira estável entre…
A bailarina metamorfoseia-se num corpo outro. Cadáver, feto, flor, pedra, árvore, inseto, ancestral. Para acolher este caosmos precisa torna-se vazio incandescente atravessado por forças e intensidades alheias. A bailarina manda sinais de uma pira funerária que já virou cinzas.
Mas meu corpo não é meu! Ele tem uma memória. Corpo geológico. Como acessar esta memória que os terremotos da vida jogaram de cima para baixo nas camadas mais profundas? Envelhece invisivelmente a cada segundo. Não os desejos. Nosso corpo que não é nosso nos acompanha de longe carregando nossa vida que não é nossa. Passa sempre ao lado, na periferia desfocada do campo de visão.
A bailarina não dança. Sonha com um corpo outro. Fazemos parte deste sonho e no final não sabemos mais se ela sonhou de nós ou se somos bailarinos sonhando. Agora só tem um corpo dilatado ao espaço todo. E, de repente, estamos respirando o mesmo ar. Respiramos todos o mesmo ar sempre. Boca a boca. Corpo a corpo. Apneia da vida.
INSTALAÇÃO DSÍ
O que está em jogo no acontecimento performativo onde vida e arte se dobram e se tocam no justo espaço da dança?
O corpo próprio?
E que corpo é este?
DSÍ nos desafiou o encontro com este outro espaço do corpo. Por debaixo de camadas infinitas de pele, buscamos incessantemente tocar a superfície sutil de um corpo pré-verbal, imaginário, perceptivo, potente e sensório.
Neste percurso, a memória, suas marcas reais ou ficcionais e os instantes de uma vida desestabilizaram lugares deste corpo para religa-lo a novos estados no aqui e no agora.
Espelhamentos de si, reflexos do outro que atravessam e perfuram a fina camada da ação performativa, se misturam e se desintegram em leves partículas que repulsam e atraem o instante do gesto que gesta. E a experiência se-refaz.
AnaVitória
A Poética das Pulsões Afirma um poema de Mário Cesariny: “o meu corpo se transfigura / e toca o seu próprio elemento / num…
Com efeito, Ana Vitória nos apresenta uma obra em que, em última instância, indaga pela possibilidade da dança. É claro que esse questionamento seria desprovido de sentido, caso não se efetivasse do modo adequado; de fato, haveria o risco de que tudo resultasse em malogro, não fosse a indagação realizada por alguém que dispõe dos meios necessários para formulá-la − alguém como Ana Vitória, cuja trajetória na dança vem atestando seu lugar de destaque no cenário contemporâneo.
A primeira questão problematizada em Pulsão do Laço está relacionada ao espaço. Ao apresentar-nos um corpo imóvel, atado às paredes, enseja a indagação: haverá dança? Como poderá dançar este corpo, enredado na trama visível que, aparentemente, tolhe cada movimento? Sabemos, é claro, que de algum modo haverá dança; não obstante, o estranhamento suscitado pela situação inicial tem a função de desnaturalizar a dança enquanto ato. Tipicamente, talvez estivéssemos diante de um palco vazio, perante o qual aguardaríamos o início do espetáculo; talvez encontrássemos o(s) corpo(s) estático(s), mas num cenário adequado à dança − isso é, com espaços livres, abertos ao movimento. Aqui, a situação é outra: há o corpo, há o espaço, mas parece haver uma insuperável tensão entre ambos.
A dança só se torna possível a partir de um convite. “Me ajuda a dançar?”, pergunta Ana Vitória ao público, dando assim início a um duplo processo: primeiro, a desconstrução do espaço − por parte daqueles que, arrancando das paredes as fitas que atavam o corpo, tratarão de criar o espaço necessário à dança; segundo, a negociação de movimentos − uma vez que o corpo permanece sujeito à força e à ação dos que, retendo os laços, determinarão os gestos possíveis. Claro está que, nessas condições, a dança pode realizar-se ou não: é possível que o corpo não possa mover-se, asfixiado por presenças excessivamente próximas e dominadoras, por forças restritivas, por tensões incontornáveis; ou, no caso oposto, que a dança se efetive como uma conjugação de esforços, gerando uma harmonia condicionada por uma multiplicidade de movimentos imprevisíveis.
A obra de Ana Vitória visa, precisamente, a um agenciamento de pulsões corporais que, esteticamente arranjadas, convirjam para uma experiência artística. No caso em questão, o tempo ‘pulsão’ não precisa ser entendido num sentido específico ou restritivo; é suficiente resgatar a sua raiz etimológica − o verbo latino pulso, -are, que registra, como acepções possíveis, ‘impelir’, ‘expulsar’, ‘vibrar’. A poética de pulsões concebida por Ana Vitória se erige a partir de corpos autônomos, que se movem a partir de forças não sujeitas a uma solicitação prévia; a eles é resguardado o pleno direito ao movimento − que vibrem, que deem vazão aos seus impulsos: apenas a partir dessa liberdade fundamental pode Ana Vitória lidar com a imprevisibilidade que, enlaçada no ato criativo, gera a dança. Para a poética das pulsões, a singularidade é essencial.
Observe-se que, embora tudo isso tenha lugar no espaço físico, trata-se do reflexo de um processo que ocorre em nível cognitivo. Com efeito, a negociação dos corpos espelha uma negociação de significados que constitui a própria dança − mais que isso: constitui todas as formas de arte, enquanto eventos comunicativos. Para que a arte seja possível, o jogo de sentidos proposto pelo artista demanda um acolhimento da parte de quem se situa diante da obra: é preciso que esse, de algum modo, torne-se um participante da experiência artística, permitindo-se recriá-la a partir de seu repertório particular de significações. Se isso não ocorre, emerge a incompreensão que bloqueia a sensibilidade; a arte resulta em malogro − seja por um fracasso do artista, seja por uma hostilidade do público. Não obstante, quando a negociação é bem sucedida, da arte emerge a experiência cuja singularidade é produzida pela cumplicidade entre artista e assistência. O que Ana Vitória faz é tornar concreto esse intercâmbio que, em geral, permanece confinado ao invisível.

O fato de serem vermelhos os laços que unem Ana Vitória ao público-atuante, no ato da dança, também pode ser percebido de um modo simbólico: a cor remete ao sangue, traduzindo o tecido corporal num tecido material que enlaça os corpos, estabelecendo uma diferenciada relação de intimidade. Ao convidar o público ao espaço em que a dança se efetiva, o que faz Ana Vitória é propiciar relações inusitadas, criando um lugar aberto à manifestação do afeto − que, por sua vez, manifesta-se plasticamente através do gesto, que reconfigura (tornando artística) a relação entre o público-atuante e o corpo que dança.

A ruptura, contudo, é inevitável. Ana Vitória guarda, secretamente, uma tesoura: é com ela que rompe os laços, encerrando a experiência que ensejara. Trata-se de algo necessário, já que a devolução ao cotidiano não pode ser permanentemente adiada. Interromper a negociação, entretanto, não implica encerrar o ato simbólico: esse, internalizado pelo público-atuante (num processo ainda mais profundo, precisamente pelo papel ativo que lhe foi atribuído), permanece registrado − não apenas na memória, mas também na superfície corporal, precisamente pela participação no gesto criador. Uma vez partícipes da dança, as pulsões do corpo não a abandonam: secretamente, continuam a repeti-la − tornando perpétuo o laço com que as uniu Ana Vitória.
Durante anos e anos de nossa existência, temos o privilégio de um encontro. Todos os meses, nos olharmos pelo avesso. Esse mergulho e reencontro encarnado se…
Estes corpos que constroem suas liberdades: para uma leitura (feminista) de Ferida Sábia
Durante séculos, as mulheres permaneceram condenadas ao seu destino biológico. Reiterados valores androcêntricos − muitas vezes, francamente misóginos − fizeram cristalizar uma “diferença” em que o feminino, sempre na condição de polo oposto, inferior e periférico, permanecia determinado por desvios inscritos na superfície corporal. Como a suposta fraqueza não levaria à dependência? Como a exaltada sensibilidade não suscitaria a desrazão, mesmo a loucura? Como a reprodução, enquanto inevitável destino, não ensejaria o confinamento sob a máscara do cuidado?
Assim se construiu o imaginário que, aproximando a mulher da natureza − selvagem, enigmática e perigosa −, determinou como dever masculino o exercício da dominação: numa suposta “guerra dos sexos”, ao homem caberia a tarefa civilizatória.
Henrique Marques-Samyn
Domar a mulher, controlá-la, mantê-la sob firmes rédeas: assim se legitimou a violência que incontáveis vezes se exerceu (e continua a exercer-se) sobre o corpo feminino; uma violência tanto física quanto simbólica. Como não cobrir aquela que, lasciva e sujeita a uma natureza instável, poderia atrair o homem à sombra do seu seio obscuro? Sobre a pele da puta foi lançado o manto da santa, velando-a, supostamente para o bem de si mesma. Apartada do espaço público e da esfera do poder, condenada aos subterrâneos,cunhou-se para a mulher a imagem de maldita, femme fatale, avatar de todas as perdições. Todavia, não há poder sem resistência; e, ao longo dos séculos, as silenciadas começaram a fazer-se ouvir − com gritos que soariam cada vez mais alto.
Todas essas perspectivas o Feminismo modificou; tantas outras, o Feminismo continua a modificar. No que tange a determinismos biológicos, o mais contundente golpe desferido em tempos recentes veio de um dos seus mais proeminentes desdobramentos: o Transfeminismo, que leva até as últimas consequências a percepção do gênero como derivado de um processo de construção cultural. O “tornar-se mulher” outrora explicitado por Simone de Beauvoir se revela, então, algo decisivamente livre da esfera biológica, na medida em que a própria noção de sexo se revela produto de uma definição a partir dos referenciais de gênero; daí o reconhecimento de possibilidades identitárias que, embora previamente existentes, permaneciam invisíveis. É a identidade feminina meramente produzida a partir do corpo? O que faz com que um corpo seja “feminino”? Se o gênero é construído no âmbito da cultura, o que justifica o apelo a qualquer referencial biológico?
Com o Transfeminismo, é levado ao extremo o questionamento em torno do uso da biologia como fundamento para a determinação dos gêneros: se estes são produzidos pela cultura, e se cada cultura ao longo da história produz suas próprias categorias, então nada mais legitima que recorramos a discursos essencialistas; mais: se “se tornam” mulheres corpos designados como femininos, também podem fazê-lo corpos designados como masculinos, a partir da identidade que cada indivíduo constrói para si mesmo. Disso decorre o que desestabiliza definitivamente os rígidos discursos patriarcais: as identidades trans, em que corpos lidos tradicionalmente como “femininos” se revelam portadores de identidades masculinas, e vice-versa, sem que isso deva ser visto como fenômeno desviante de uma norma que só arbitrariamente poderia legitimar-se. De onde a consequência inevitável, e intolerável para a tradicional ordem estabelecida pelo patriarcado: não apenas mulheres, mas também homens − os homens trans, ou seja, portadores de “corpos femininos”, seios e vagina, útero e ovários − podem menstruar ou engravidar, sem que isso deva ser percebido como afronta à sua identidade.
Porque é preciso levar em conta que o ponto de partida, aqui, é o corpo − ou, para falar de modo mais específico: um estado corporal, enredado numa teia de significações que de múltiplas formas o configura; que, em diferentes culturas, foi associado à “essência feminina”, como manifestação espontânea de sua proximidade com a “natureza” indomada; que, a partir disso, serviu à ordem patriarcal como recurso para atestar a “impureza” da mulher, sua condição maldita, como alguém (ou algo) de que(m) se deve guardar distância, pelo que encerra de sinistro ou perturbador. Camisolas, calçolas e anáguas operam como índices dessa feminilidade concebida a partir de uma dimensão biológica, que insiste em evidenciar-se pela eclosão do sangue − signo, por sua vez, androcentricamente associado à violência, enquanto manifestação de um estado natural em que se esbatem as fronteiras entre a mulher e a fera (Ferida Sábia: camisolas sustentadas por ossos de boi), ou enxerga na mulher uma mera manifestação do ciclo natural (Ferida Sábia: associação camisola ~ cerejeiras ~ fluxo menstrual).
De outro lado, o que ousa fazer Ana Vitória, ao registrar e expor seu fluxo menstrual, senão denunciar a instância biológica à qual a mulher é reduzida pelos discursos essencialistas, simultaneamente violando as normas que fazem do mênstruo um objeto de vergonha − algo a ser oculto por princípios que, apelando à “higiene”, geram todo um conjunto de práticas e artefatos destinados a confinar em espaços reservados o que viola a estética dos espaços masculinos? A isso remete todo o conjunto de itens recolhidos por Ana Vitória − bacias, segundas-peles −, configurando o lugar para onde converge tudo aquilo que abriga, protege ou simboliza este corpo condenado, pelo patriarcado, a jamais dissociar-se do referencial biológico ao qual pretensamente se reduz.
Esse acervo de objetos, situado no espaço da instalação, é o reflexo exterior de uma materialização da feminilidade que também se inscreve no corpo, no qual eclode como um repertório de gestos mobilizados por Ana Vitória em sua construção coreográfica. O cárcere em que o patriarcado modelou o corpo feminino se faz ruína quando esse conquista sua própria liberdade. A prática da costura − tão intrinsecamente associada à mulher que já serviu, outrora, como rito iniciático para as meninas, quando de sua menarca − se revela uma metáfora: em Ferida Sábia, os corpos em convívio se dedicam precisamente a desfazer a trama de fios que antes os enredava, desse modo aludindo ao processo emancipatório feminista; e não é por acaso que assim se inicia a coreografia, cujo desenvolvimento espelhará uma progressiva libertação. A princípio presos aos movimentos ritualizados, os corpos rompem os grilhões da tradição através da dança; e conquistam, simultaneamente, direito à voz − que, se num primeiro momento se reduz às falas cristalizadas por séculos de opressão, posteriormente desvela a singularidade, precisamente ali onde os dispositivos sexistas apenas situavam instâncias de uma condição “feminina” invariável.
Isto, portanto, o que faz Ana Vitória: denunciar aquelas estruturas tradicionais que faziam dos corpos das mulheres os seus destinos, e reclamar uma nova ordem, desafiadora ao patriarcado, em que seja permitido às mulheres construírem novos sentidos a partir dos seus próprios corpos; uma ordem em que esses sejam lugares de experiência, não instrumentos para a opressão. Tudo isso é, sim, Feminista; e tudo isso também aponta para o Transfeminismo, na medida em que fornece os fundamentos para que o corpo materialize a expressão do gênero, de modo que a mulher possa construir livremente sua própria feminilidade. Ferida Sábia: não uma arte “feminina”, mas uma arte feminista − por isso, audaciosa e libertadora.
DA COISA CORPORAL?
o que há por trás
da coisa corporal ?
Com a questão proposta no título, a artista busca elaborar um campo vibratório onde dispersão-forma-dispersão sejam entrevistas. Entrever no sentido de experienciar o entre, o intervalo, colocando em suspenso o já codificado, revelando que a forma é o devir das forças. Por que o corpo? É justo na dimensão das forças, do campo intensivo, sensível, campo que antecede as formas, pré-individual, que é evocada, ao nomear seu trabalho, a idéia de Corpo sem Órgãos (CsO) inscrita no ovo. Retirar o olhar do campo já representado só se faz possível na produção de um CsO como nos dizem Deleuze e Guattari em “Como criar para si um Corpo sem Órgãos”, campo fluido, viabilizador das deformações necessárias para a captação do novo.
Passamos então, de uma oposição estática da forma e da matéria a uma zona de dimensão média, energética, molecular, que permite pensar uma matéria energética em movimento, portadora de singularidade ou hecceidade, que são formas implícitas que se combinam com processos de deformações.
A arte realizada neste trabalho de Ana consiste em seguir os fluxos da matéria, consiste em ofertar à sensação a possibilidade de captar as forças invisíveis, mostrar o momento de metamorfose. Ao buscar no corpo a marca do tempo, a artista revela que a eternidade, como matéria em movimento e não como vazio transcendente, aponta para a vida como obra de arte, massa sensorial produto de experimentação, onde memória e desejo compõem as atualizações existenciais.
Hélia Borges