Durante anos e anos de nossa existência, temos o privilégio de um encontro. Todos os meses, nos olharmos pelo avesso. Esse mergulho e reencontro encarnado se dá por um lento e contínuo descamar… Como uma troca de pele, processamos em nosso corpo uma auto – limpeza orgânica e espiritual. Aí se dá, para a mulher, seu maior enfrentamento na vida; constatar o tamanho da sua força, dos fluxos que correm e escorrem pelo seu corpo, que aborta é fértil e fecunda. Receptáculo de nós mesmos e do Mundo, a menstruação é esse espelho que nos revela com a pele arrancada, sem a carne, sem os ossos. Fluxo de vida que percorre nossas entranhas e vísceras, o avesso de nós mostrando que ainda somos atavicamente ligadas aos ciclos da natureza e ainda tecemos nossos laços com a ancestralidade. Esse deflorar-se que pacientemente e resignadamente carregamos é também a potência e a abertura para virmos a ser outros…
Estes corpos que constroem suas liberdades: para uma leitura (feminista) de Ferida Sábia
Durante séculos, as mulheres permaneceram condenadas ao seu destino biológico. Reiterados valores androcêntricos − muitas vezes, francamente misóginos − fizeram cristalizar uma “diferença” em que o feminino, sempre na condição de polo oposto, inferior e periférico, permanecia determinado por desvios inscritos na superfície corporal. Como a suposta fraqueza não levaria à dependência? Como a exaltada sensibilidade não suscitaria a desrazão, mesmo a loucura? Como a reprodução, enquanto inevitável destino, não ensejaria o confinamento sob a máscara do cuidado?
Assim se construiu o imaginário que, aproximando a mulher da natureza − selvagem, enigmática e perigosa −, determinou como dever masculino o exercício da dominação: numa suposta “guerra dos sexos”, ao homem caberia a tarefa civilizatória.
Henrique Marques-Samyn
Domar a mulher, controlá-la, mantê-la sob firmes rédeas: assim se legitimou a violência que incontáveis vezes se exerceu (e continua a exercer-se) sobre o corpo feminino; uma violência tanto física quanto simbólica. Como não cobrir aquela que, lasciva e sujeita a uma natureza instável, poderia atrair o homem à sombra do seu seio obscuro? Sobre a pele da puta foi lançado o manto da santa, velando-a, supostamente para o bem de si mesma. Apartada do espaço público e da esfera do poder, condenada aos subterrâneos,cunhou-se para a mulher a imagem de maldita, femme fatale, avatar de todas as perdições. Todavia, não há poder sem resistência; e, ao longo dos séculos, as silenciadas começaram a fazer-se ouvir − com gritos que soariam cada vez mais alto.
Todas essas perspectivas o Feminismo modificou; tantas outras, o Feminismo continua a modificar. No que tange a determinismos biológicos, o mais contundente golpe desferido em tempos recentes veio de um dos seus mais proeminentes desdobramentos: o Transfeminismo, que leva até as últimas consequências a percepção do gênero como derivado de um processo de construção cultural. O “tornar-se mulher” outrora explicitado por Simone de Beauvoir se revela, então, algo decisivamente livre da esfera biológica, na medida em que a própria noção de sexo se revela produto de uma definição a partir dos referenciais de gênero; daí o reconhecimento de possibilidades identitárias que, embora previamente existentes, permaneciam invisíveis. É a identidade feminina meramente produzida a partir do corpo? O que faz com que um corpo seja “feminino”? Se o gênero é construído no âmbito da cultura, o que justifica o apelo a qualquer referencial biológico?
Com o Transfeminismo, é levado ao extremo o questionamento em torno do uso da biologia como fundamento para a determinação dos gêneros: se estes são produzidos pela cultura, e se cada cultura ao longo da história produz suas próprias categorias, então nada mais legitima que recorramos a discursos essencialistas; mais: se “se tornam” mulheres corpos designados como femininos, também podem fazê-lo corpos designados como masculinos, a partir da identidade que cada indivíduo constrói para si mesmo. Disso decorre o que desestabiliza definitivamente os rígidos discursos patriarcais: as identidades trans, em que corpos lidos tradicionalmente como “femininos” se revelam portadores de identidades masculinas, e vice-versa, sem que isso deva ser visto como fenômeno desviante de uma norma que só arbitrariamente poderia legitimar-se. De onde a consequência inevitável, e intolerável para a tradicional ordem estabelecida pelo patriarcado: não apenas mulheres, mas também homens − os homens trans, ou seja, portadores de “corpos femininos”, seios e vagina, útero e ovários − podem menstruar ou engravidar, sem que isso deva ser percebido como afronta à sua identidade.
Porque é preciso levar em conta que o ponto de partida, aqui, é o corpo − ou, para falar de modo mais específico: um estado corporal, enredado numa teia de significações que de múltiplas formas o configura; que, em diferentes culturas, foi associado à “essência feminina”, como manifestação espontânea de sua proximidade com a “natureza” indomada; que, a partir disso, serviu à ordem patriarcal como recurso para atestar a “impureza” da mulher, sua condição maldita, como alguém (ou algo) de que(m) se deve guardar distância, pelo que encerra de sinistro ou perturbador. Camisolas, calçolas e anáguas operam como índices dessa feminilidade concebida a partir de uma dimensão biológica, que insiste em evidenciar-se pela eclosão do sangue − signo, por sua vez, androcentricamente associado à violência, enquanto manifestação de um estado natural em que se esbatem as fronteiras entre a mulher e a fera (Ferida Sábia: camisolas sustentadas por ossos de boi), ou enxerga na mulher uma mera manifestação do ciclo natural (Ferida Sábia: associação camisola ~ cerejeiras ~ fluxo menstrual).
De outro lado, o que ousa fazer Ana Vitória, ao registrar e expor seu fluxo menstrual, senão denunciar a instância biológica à qual a mulher é reduzida pelos discursos essencialistas, simultaneamente violando as normas que fazem do mênstruo um objeto de vergonha − algo a ser oculto por princípios que, apelando à “higiene”, geram todo um conjunto de práticas e artefatos destinados a confinar em espaços reservados o que viola a estética dos espaços masculinos? A isso remete todo o conjunto de itens recolhidos por Ana Vitória − bacias, segundas-peles −, configurando o lugar para onde converge tudo aquilo que abriga, protege ou simboliza este corpo condenado, pelo patriarcado, a jamais dissociar-se do referencial biológico ao qual pretensamente se reduz.
Esse acervo de objetos, situado no espaço da instalação, é o reflexo exterior de uma materialização da feminilidade que também se inscreve no corpo, no qual eclode como um repertório de gestos mobilizados por Ana Vitória em sua construção coreográfica. O cárcere em que o patriarcado modelou o corpo feminino se faz ruína quando esse conquista sua própria liberdade. A prática da costura − tão intrinsecamente associada à mulher que já serviu, outrora, como rito iniciático para as meninas, quando de sua menarca − se revela uma metáfora: em Ferida Sábia, os corpos em convívio se dedicam precisamente a desfazer a trama de fios que antes os enredava, desse modo aludindo ao processo emancipatório feminista; e não é por acaso que assim se inicia a coreografia, cujo desenvolvimento espelhará uma progressiva libertação. A princípio presos aos movimentos ritualizados, os corpos rompem os grilhões da tradição através da dança; e conquistam, simultaneamente, direito à voz − que, se num primeiro momento se reduz às falas cristalizadas por séculos de opressão, posteriormente desvela a singularidade, precisamente ali onde os dispositivos sexistas apenas situavam instâncias de uma condição “feminina” invariável.
Isto, portanto, o que faz Ana Vitória: denunciar aquelas estruturas tradicionais que faziam dos corpos das mulheres os seus destinos, e reclamar uma nova ordem, desafiadora ao patriarcado, em que seja permitido às mulheres construírem novos sentidos a partir dos seus próprios corpos; uma ordem em que esses sejam lugares de experiência, não instrumentos para a opressão. Tudo isso é, sim, Feminista; e tudo isso também aponta para o Transfeminismo, na medida em que fornece os fundamentos para que o corpo materialize a expressão do gênero, de modo que a mulher possa construir livremente sua própria feminilidade. Ferida Sábia: não uma arte “feminina”, mas uma arte feminista − por isso, audaciosa e libertadora.
Mutações:
a ferida como experimentação
de uma escrita performática visceral
O que acontece quando aquilo que vemos, mesmo à distância, parece nos tocar, estabelecer um contato forte, quando a questão de ver é uma espécie de toque, quando ver é um contato a distância? O que acontece quando aquilo que é visto se impõe ao seu olhar, como se o olhar fosse apreendido, tocado, colocado em contato com a aparência? Maurice Blanchot, 1981.
Ana Vitoria acredita “na historia pessoal e na memória como ferramentas e fontes inesgotáveis para projetos autorais” e esta atitude se faz presente desde os primeiros e incertos passos que iniciam a performance, caminhando para frente/para traz, desenrolando percursos e fios de memória individual e coletiva, através de gerações. Creio que, ao pensar em fluxos e conexões, Ana estabelece o que Irigaray (1991) chamou de ‘mecânica dos fluidos’, uma forma de pensar que afrouxa ligações conceituais voltadas para afirmação da presença, para indicar processos de mudança, transformações e mutações fluidas. Antes o ovo, as valises, as hélices, agora as descamações menstruais, como indícios de ciclos de regeneração. Em todos, o corpo mutante, o entremear de linguagens e a aproximação do tabu, tanto como trânsito incerto entre proibido e sagrado como, e talvez mais ainda, em seu sentido etimológico, como – aquilo que marca com intensidade.
Assim, a Ferida Sabia, saturada pelo vermelho, produz inicialmente um efeito de encharcamento, não apenas o de banhar-se em sangue, mas aquele que escorre de dentro para fora, deixa suas marcas, seus signos de gênese de vida – e nos impregna. Logo em seguida, a respiração mais acalmada, vemos surgir os entre vermelhos: detalhes de carne, de panos e outros objetos, cada um transpirando uma perturbadora vivacidade, como se a proximidade do sangue os tivesse contaminado com sua força própria. Casulos de fios vermelhos entremeados de objetos pessoais, que apenas podemos entrever, nos incitam a decifrar: fluxos, percursos, redes que nos conectam a rituais ancestrais, trilhas para a imaginação coletiva. No fundo de um vaso, uma pequena gota vermelha escorre silenciosa, mais adiante explode abruptamente e logo sugere a cena de um crime, ao mesmo tempo que provoca um impulso de puxar a descarga e eliminar a evidência. Ou mergulhar nela e conhecer, re-conhecer-se.
Enquanto os rastros e migrações do vermelho sugerem percursos, suas impregnações propõem uma cognição instintiva do evento, mais do que sua contemplação. Rastros e impregnações se abrem a novas incorporações de sentidos e à produção de alegorias, ao mesmo tempo em que des-singularizam objetos cotidianos, para lhes inferir um novo valor, agora no espaço da imaginação.
A figuração, ao se dar a ver por dentro e por uma variedade de ângulos, se torna um mapa vivo e descentralizado. Ela levanta a questão da subjetividade nômade como empreendimento coletivo, simultaneamente exterior e transformador de nossas estruturas profundas, e indica uma forma de habitar/percorrer espaços: permitindo/realizando conexões e contaminações, sem procurar reter ou apropriar-se de seus fluxos. Estados mutáveis, experiências de proximidade empática, intensas conexões. A repetição de passos, os gestos precisos e seus rituais de alusão e associação estabelecem um pacto de compartilhamento e nos impulsionam em múltiplas e arriscadas direções, em itinerários idiossincráticos e torções em torno de ideias, daquele momento em diante – extra-textuais.
E, finalmente, a questão da dupla sensação, do continuum de tocar e ser tocado, que tem na ‘carne’ a zona onde este fenômeno reversível acontece. De Certeau (1979) investigou a noção de ‘carne’ indicando que nela reside uma materialidade residual, um sofrimento que permanece anterior e irredutível à inscrição e textualização. Talvez possamos dizer que o corpo coletivo desta Ferida Sábia, ao se inclinar sobre si e sobre nós em seu vir-a-ser, estabelece um contagio fluido de intensidades e eventos, nos infesta com a sensação de uma beleza que não precisa mais se distinguir da dor ou da abjeção. Da mesma forma que Derrida (1993) colocou a cegueira no cerne do ver, aqui é o descamar-se que evidencia a ‘carne’ como zona de troca, como o ‘espaço-entre’ das atuações performáticas. Tocados, deciframos, caminhamos, fazemos escolhas, recriamos e, subitamente, nos percebemos – participantes.
Regina Miranda
Ficha Técnica
Ficha Técnica
Estréia nacional 2012
FERIDA SÁBIA
Concepção geral e direção – Ana Vitória
Intérpretes
Ana Vitória
Priscilla Teixeira
Marina Magalhães
Soraya Bastos
Participação Especial
Angel Vianna
Assistência de coreografia
Renata Costa
Ambientação
Sérgio Marimba
Desenho de Luz
Milton Giglio
Figurinos
Ticiana Passos
Trilha sonora organizada
AnaVitória
Visagismo
Rose Verçosa
Desenho de som
Michael Sexauer
Fotografia
Renato Mangolin
Vídeo
Mônica Prinzac
Programação Visual
Nucleo-i / Gabriela Horta
Assessoria de Imprensa
Raquel Silva
Produção
Neco FX
Realização
Iroco Produções Artísticas
www.anavitoria.com.br