13 jul Anna Halprin e a dança curativa ou performance da vida

Anna Halprin (1920) completa hoje 100 anos de vida. Sua dança híbrida vem atravessando toda a nossa forma de compreensão e análise crítica ao longo de anos de história das artes contemporânea, com uma abrangência que afetou e determinou os novos rumos dos saberes do corpo e das “ciências coreográficas”, podemos afirmar do mundo da dança ocidental de meados do séc XX até os nossos dias. A gênese da sua força criativa vem da dança e nela se dilata e distende tanto, a ponto de promover dentro deste contexto e linguagem artística um movimento que desestabiliza suas fronteiras. Romper com “as convenções artísticas preponderantes” de sua(nossa) época e, ao incorporar em seu ambiente criativo “novos ideais de democracia e de anti-elitismo”, promove novos diálogos e caminhos de aproximação entre a vida e a arte.

Halprin optou por construir sua história distante da efervescência cultural que avassalava Nova York nas décadas de 50 e 60, quando os artistas colocavam em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais. Seu trabalho foi direcionado a criar e desenvolver uma metodologia que pudesse dar suporte para o intérprete descobrir e articular sua própria linguagem e seu próprio movimento. Isto deu-se por intermédio da consciência cinestésica que estava diretamente ligada ao espaço, outro fator primordial do pensamento halpriano.  Que foi construído a partir da sua união com o arquiteto “dedicado à organicidade” Laurence Halprin. Ambos foram fortemente influenciados na década de 40 pelo movimento e conceitos da Bauhaus, sob a tutela de Walter Gropius, deslocado da Alemanha pelo nazismo para Harvard, aonde se conheceram.

Apesar de ser ainda pouco conhecida fora dos EUA, Anna Halprin é uma das principais fundadoras do movimento revolucionário chamado postmodern dance – formando os principais criadores e pensadores da dança contemporânea, como os coreógrafos Merce Cunnighram, Steve Paxton, Trisha Brown, Yvonne Rainer, Simone Forti e Meredith Monk, só para citar alguns nomes do mainstream entre muitos outros. Seus primeiros laboratórios de improvisação estruturada ainda na década de 1950, procedimento que passa a ser assumido e desenvolvido na sua pedagogia, bem como em suas criações artísticas, como força motriz que conduzirá todas as gerações seguintes a repensar os contornos e modos de se fazer, ler e pensar a dança, legou à dança pós-moderna mais do que princípios e uma filosofia inovadora; uma atitude diante do seu meio e o mundo.

Ao propor novas formas de comportamentos ao universo da exploração da dança, Halprin acaba por desencadear um novo paradigma no que diz respeito às relações estabelecidas entre os integrantes de um jogo coreográfico, por exemplo. Destituindo o lugar do criador, àquele que tem autonomia para improvisar e criar o caminho a ser representado, Halprin propõe agora aos seus bailarinos/intérpretes o deslocamento da criação propondo que eles próprios busquem improvisar e descobrir em seus corpos uma organicidade capaz de construir “partituras” mais imprevisíveis, menos codificadas e próximas do cotidiano do homem contemporâneo. Ao incorporar o outro em seu fazer artístico/pedagógico sem restrições, posto que seus trabalhos tinham desde bailarinos profissionais a pessoas de outras formações profissionais, promove, pela diferença, diálogos singulares e multiculturais do sujeito contemporâneo.

No seu trabalho a artista sustenta a necessidade do “ritual consciousness” (consciência ritual) como meio de aproximação e enriquecimento da experiência individual e de grupo, sugerindo “Observar o ritual potencial em sua experiência a cada dia” (Halprin, 2000, p. 40). Desde muito cedo Anna vem empreendendo e depurando essa ideia que começa mesmo nos anos 60 quando a partir das suas improvisações coletivas dirigidas para a criação coreográfica, desenvolve o conceito de “task performances” (tarefas) onde os gestos arbitrários do cotidiano passam a ser re-valorizados para a construção dramatúrgica da dança teatral como correr, andar, vestir, despir-se, etc. Uma das pioneiras a usar o Nu no palco e a provocar debates sociais importantes como a questão racial ao colocar em um dos seus trabalhos só artistas negros e em outro mais de 20 bailarinos cada um de uma nacionalidade diferente.

Já nos anos 50 de forma visionária levava seus grupos de alunos e bailarinos a ocuparem praças e ruas realizando performances que buscavam estabelecer uma maior aproximação com o outro, a arquitetura das cidades e sua natureza. Incorporava, sempre que possível, aqueles que quisessem participar de suas performances artísticas-rituais e teatrais, consciente que seu trabalho não era para ser apenas contemplado, pois não buscava fazer somente entretenimento. A dança de Anna Halprin cumpre um percurso que vai do indivíduo ao social, que faz pulsar forças adormecidas, anestesiadas pela violência do mundo urgente e do sentido de pertencimento. Podemos dizer que do “imprevisível eu” apresentado em sua nudez e presentificado por seu gestual cotidiano, Halprin leva o sujeito de volta à sua condição essencial, restituindo-lhe o sentido de coletividade, fazendo-o posicionar-se frente as questões políticas, sustentáveis, físicas e emocionais. Naturalmente sua mandala na vida vai se fechando em constantes movimentos como em sua excepcional Dança Planetária – Circle the Earth. 

Na década de 70 Anna Halprin começou a desenvolver, através da dança, uma interessante pesquisa entre o imaginário e o movimento chamada de “visualizations”. Bastante explorada ainda em seus workshops, passou em um destes pela experiência de desenhar uma grande “bola cinza” na sua região pélvica, mas sem conseguir extrair movimento desta imagem. Sua intuição levou-a a investigar o que aquela ação poderia estar manifestando, e esta investigação acabou por descobrir que estava com um tumor maligno no cólon. Este acontecimento fez Halprin mergulhar mais profundamente ainda na sua pesquisa em torno das imagens, imaginários e a dança, comprometendo definitivamente sua posição pessoal e sua vida na sua profissão.

Halprin decide criar uma performance ritual intitulada Dancer my cancer realizada uma única vez para um grupo seleto de amigos e familiares, aonde coloca-se frente a frente com sua doença em um embate físico, psicológico e espiritual, não só renovando sua crença na dança como dimensão de ritualidade e espiritualidade mas sobretudo reforçando-a como potência artística capaz de restaurar e reestruturar o corpo biológico e o sujeito. Afirmando que, se ela criou a doença, ela poderia também criar a sua cura, e que não se entregaria só e exclusivamente aos recursos científicos para consegui-la. O próximo exame clínico de Anna Halprin após seu rito de purificação-social-teatral ou “experiência” como gosta de chamar, deu negativo e ela estava curada.

Após este acontecimento toda a vida de Halprin se volta para o aprofundamento do trabalho corporal aonde os estados físico, emocional e mental se unem à dança curativa e da vida. Sua busca pela cura encorajou a comunidade ao seu redor e, com sua filha Daria Halprin em 1978 fundaram o Instituto Tamalpa na Califórnia que oferece programas de treinamento e workshops no processo criativo de integração entre psicologia, terapias corporais e educação com a dança, como um caminho para a cura e resolução de conflitos sociais. Suas oficinas “Process Halprin Life/Art” tem como foco as necessidades terapêuticas e corporais, usando as ferramentas expressivas do corpo e integrando o movimento, a voz, o desenho, a improvisação e a performance, afim de provocar o outro a explorar a si mesmo e usar a arte como um caminho para curar-se em um processo profundo de transformação pessoal, interpessoal e social.

Ao longo destes anos Anna, uma artista da dança, quase única, redefiniu e deslocou lugares e gêneros característicos da representação desta arte que já se intitulava contemporânea, mas pouco se reconhecia na tradição “herdada” e no frágil balbucio dos seus novos cânones. Anna segue hoje aos 100 anos de idade trabalhando com Instituições científicas e terapêuticas de apoio a pacientes terminais ou em recuperação com Câncer, Aids, Alzheimer e deficiências mentais, utilizando seus recursos artísticos através da dança e consciência corporal afim de lhes restituir a potência energética e criativa que lhes fora retirada com a doença.

A dança contemporânea que faz Anna Halprin, insurge-se a 70 anos desestabilizando as bases conceituais convencionadas em modelos e códigos de conduta e produção que teimam em definir como e por onde a arte deve seguir. Pois ao ditar modelos, dita modas e comportamentos, mesmo e sobretudo com a chancela de serem avant-garde, o que só contribui mais uma vez para determinados criadores e intérpretes se fecharem dentro de “núcleos” seletos de arte, que apesar do discurso bem elaborado e de modelo democrático, suas práticas continuam reducionistas e segregadas. O trabalho de Halprin desestabiliza estas convenções dos falsos discursos. Seu posicionamento é “imprevisível” como e na medida de um movimento improvisado, original e recém elaborado. Construído a partir de memórias ancestres, ritos de transição, de cura, de passagem, de regresso e reagregação, como nos “dramas sociais” revitalizados pela experiência, e que só se completa a partir de uma forma de extrair-se, performando.

“Eu dancei durante toda a minha vida inteira, desde a infância até a velhice, e o que tem intrigado, fascinado, e sustentado meu compromisso é o contínuo experimentar do poder da dança integrada ao fazer do todo. Esta não é uma ideia nova. A origem da dança foi com base nessa noção. Nos tempos antigos, as pessoas dançavam para se preparar para uma caça bem-sucedida, para comemorar a vitória, para iniciar os jovens, e para curar os doentes – seja física ou psicologicamente.

Havia danças das mulheres e danças masculinas, danças de acasalamento, e danças para invocar ao Grande Espírito. Os muito jovens e idosos dançaram juntos como uma comunidade, e desta forma as crianças eram educadas nos valores da sua cultura. 

Em algum lugar ao longo do caminho do chamado progresso da civilização que se tornou especializada, e nesta especialização nos tornamos fraturado. Agora mais do que nunca na minha vida, eu vejo a necessidade de redefinir a dança mais uma vez como uma força poderosa para a transformação, cura, educação e tornar nossa vida inteira, uma dança que vai falar com as nossas necessidades de hoje. Para enfrentar este desafio proponho a reunião de todos os nossos recursos, como educadores, terapeutas e artistas para tornar a nossa cultura inteira uma dança, mais uma vez através de nossas vidas. Para a dança torna-se mais uma vez uma arte da cura.” 

(Anna Halprin)

Texto: AnaVitoria | www.anavitoria.com.br


Referências

CAUX, Jacqueline.   Anna Halprin à l’origine de la performance. Lyon: Musée d’Art Contemporaine de Lyon, 2006.

HALPRIN, Anna.  Returning to Health With Dance Movement and Imagery. Mendocino: LifeRhythm, 2000.

Moving toward life – five decades of transformational danse. Edited by Rachel Kaplan, Wesleyan University Press, Middleton, 1995.

ROSS, Janice. Anna Halprin Experience as Dance. Berkeley: University of California Press, 2007.

WITTMANN Gabriele, SCHORN Ursula and LAND Ronit. Anna Halprin – dance- Process- Form. Jessica Kingsley Publishers, 2015.